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Guida Faz 50 Anos

Semana passada decidi que Guida estava completando 50 anos. A data exata não é certa, mas o sentimento é grandioso, e não poderia passar desapercebido. Que Guida é mais velha do que eu tenho certeza, mas acho que só tomei consciência da existência dela quando eu deveria estar com uns 7 ou 8 anos de idade.


Naquela época, foi como mágica para mim: um certo dia surgiu na sala da casa uma Arca, no estilo oratório, muito colonial, de madeira escura, tão sóbria, tão calada. Minha mãe pareceu satisfeita com aquela aquisição de segunda mão. Sim, Guida já chegou em casa enjeitada, cabisbaixa, desconfiada por ter sido expulsa do primeiro lar, sabe-se lá por qual motivo.


Logo, a Arca ficou abarrotada de louças do casamento da minha mãe; tudo aquilo que não se usava no dia-a-dia; todos os presentes inúteis; vários adornos, que só poderiam sair do armário caso uma visita chegasse para o café, naqueles domingos sonolentos.


Eu não me importava com o que Guida guardava, mas ela sempre estava taciturna com aquele tom de madeira brilhante. Eu costumava correr pela sala, me esconder por entre as cadeiras, e sei que a Arca, impaciente com a energia de uma criança, sempre me repreendia. Deve ter sido com uns 10 ou 11 anos que o inevitável aconteceu: numa tarde de brincadeiras com minha amiga Peggy Sue, no esconde-esconde, devo ter me desequilibrado e me apoiei com toda a força em Guida.


De certo, Guida não gostou daquele alvoroço, esbravejou comigo, e lançou-se fúria por cima de mim. O resultado foi que, como as portas da Arca não fechavam direito, toda a louça da minha mãe veio abaixo num piscar de olhos. Foram baldes e baldes de estilhaços de cristais, vidros coloridos, porcelanas, memórias até da minha avó que jaziam ali aos pedaços, tudo sob o olhar fuzilante da minha mãe.


Eu não me lembro por quanto anos fiquei brigada com Guida por conta daquele episódio, que me custara meses de castigo e, talvez até mesmo uma amizade desfeita com Peggy Sue, já que minha n mãe não me deixava mais trazê-la em casa. Eu não suportava sequer passar ao lado da Arca, porque em meio àquela madeira, nas noites de chuva ou nas tardes de vento fugidio, ecoava um gemido de “culpada, criança culpada, menina levada”.


No final da adolescência eu deixei aquela casa e, quando voltava nos finais de semana Guida já não me remetia mais à qualquer experiência ruim. Ela continuava lá segurando em silêncio as tristezas familiares mais recônditas, e não reclamava de nada, nem de solidão, nem do peso das louças que restaram, nem de velhice. Alguns anos depois, minha mãe partiu, meu pai adoeceu e veio morar comigo, e simplesmente não fazia mais sentido manter aquela casa fechada e sem vida.


Naquela ocasião, eu não tinha espaço para ficar com todos os móveis, muitas coisas foram doadas, mas naquele universo todo de desapego, eu escolhi ficar com Guida, mesmo sabendo que, para ampará-la, eu teria que me desfazer de algo meu e abrir um novo espaço em nossa sala. A Arca chegou em nosso apartamento depois de uma viagem de mais de 1.000 km bem debilitada, lascada, carcomida, sem brilho e sem luz própria e, realmente, ela destoava de tudo mais que havia naquele lar.


Era preciso reviver Guida a qualquer custo se fosse para mantê-la naquela família. Depois de alguns meses, com um certo medo, eu convenci a velha Arca a tomar um bom banho de pintura. Então, Guida deixou para trás aquele apelo colonial, e foi rejuvenescida com um branco provençal, com os desgastes propositais e, com aquela leveza como se tivesse saído dos campos de lavanda, ganhou também espelhos ao fundo, e se tornou uma nova mulher-arca.



Móveis na Suíça e no Brasil


Guida se adaptou bem ao cerrado, à luminosidade dos dias, e a mudança de ares a tornou mais leve e bem humorada. Assim, seguimos tranquilas e muito amigas por alguns anos, até que precisei contar à Guida que cruzaríamos o oceano, e iríamos morar nos alpes por um tempo. Ela, muito jovial, nem me questionou, deixou-se desmontar e ser embalada, ser colocada num container, depois num navio e seguiu...


Três meses depois, tiraram Guida da caixa numa tarde escura em que começava a nevar. Ela me olhou com ternura, com quem diz “é preciso se erguer, apesar do cansaço”; e sei que ela ainda me achava uma menina levada, afinal, para onde eu tinha trazido aquela pobre Arca!


Nos anos que se seguiram, a Guida “provençal” foi um banho de luz naquela casa de amplas vidraças que se abriam para manhãs escuras e tardes chuvosas. Ela era o “Brasil menina” dentro de mim, o acalento diante de tantas incompreensões e dificuldades de adaptação. Guida era a certeza de que, talvez, fosse possível se reinventar e se transformar.


Um certo dia, chegou a hora de voltar. Eu me preocupei com Guida que teria que fazer uma nova travessia oceânica, fui conversando aos poucos com ela e, inclusive, contando que eu não poderia trazer de volta todos os amigos móveis que a rodeavam. Juntas dissemos adeus à muitos deles, choramos, já que a despedida vinha junto com tantas incertezas e novas perspectivas.


A Arca resistiu e chegou ao Novo Mundo bem em meio à pandemia. Com isso, foi tudo guardado às pressas, coloquei Guida na primeira parede que encontrei e pedi à ela que aguardasse, que nem eu sabia o que viria adiante. Entre idas e vindas, Guida estava bem de saúde, robusta, mas amarelada... havia perdido a leveza e, de novo, destoava de tudo mais que estava disposto na casa.


Quando depois de mais de um ano de “novo normal” bateu saudades daquela vida alpina tão descomplicada, um dia me sentei para folhear um livro que havia comprado no Museu Vitra, que eu tanto gostava de ir. Foi a partir daquele livro que encontrei um novo chamado para Guida, que já estava próxima das suas cinco décadas: essa Arca precisa ser nórdica, precisa ser minimalista!


E voilà... lá foi a Guida para mais um banho de pintura! Nossa Arca agora é salmão, é rosé... não importa... antes de tudo ela é família!!!





Sei que é errado se apegar ao mundo material. Mas, Guida não é um móvel em si. Guida é memória que se transmuta nas lâminas da madeira.

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