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Era uma vez: uma pedra redonda num muro quadrado

Quero crer que foi por coincidência: nos últimos vinte ou trinta dias, três pessoas vieram me perguntar sobre a escola dos meus filhos. Poderia ser a coisa mais banal do mundo, aquela estória de pais e mães aflitos. Mas, não, não para mim. Talvez, “trauma” seja uma palavra tenebrosa demais. Então, se não foi traumática a adaptação de Didier à escola, em Lilliput, o que terá sido tudo aquilo?

Dizem que uma forma de curar o trauma é contá-lo. Como se a narrativa lavasse a ferida. Mas, nestas últimas vezes em que contei o que se passou comigo e com Didier, eu percebi uma coisa: eu estava amenizando o trauma... eu tinha um certo receio de dizer a verdade, porque a verdade ainda dói.

Se dói um ano e meio depois, é porque a história ainda não foi narrada o bastante. Então, resolvi escrever e lavar a alma de vez.

Na construção desse projeto sabático eu não imaginava que a mudança de país seria um problema para meu filho. Para mim, Didier nascera pronto para a vida. De alguma forma, ele já sabia de tudo (ou quase tudo). Não se apaixonou pela chupeta. Largou a mamadeira sem olhar para trás. Tirou as fraldas e seguiu adiante. Sorriu para mim no primeiro dia de creche e, me disse adeus como quem está indo ali na esquina. Mudou de cidade aos 4 meses de vida. Transferiu-se novamente de cidade aos 11 meses e, depois, aos 20 meses mudou até de Estado. No mesmo mês que a irmã Petite nasceu, ele mudou de escola como quem troca de tênis velho. Num mesmo dia tomou 4 injeções, choramingou, pediu um gibi na banca da esquina e esqueceu-se das picadas. Enfim, com um garoto como esse, por que largar o seu país aos 5 anos, falando meia dúzia de palavras em inglês, seria um problema?

Com isso, meu coração estava em paz quando, ainda no Brasil, havíamos matriculado Didier numa dessas escolas internacionais, onde uma infinidade de estrangeiros registram seus filhos, onde a vida em transição é uma palavra-chave.

Não! Erro grosseiro... Erro daqueles vergonhosos! Que pai matricularia seu filho sem antes conhecer a escola, sem antes falar com os professores, sem antes vivenciar o ambiente estudantil? Ainda hoje eu me indago: aonde é que eu estava com a cabeça? Por que tanta afobação?

Usando palavras “amenas”: foi uma sucessão de chateações. A International School of Lilliput não ficava em Lilliput, ficava numa cidade-satélite. Naquele momento ainda não tínhamos carro, então, Didier tinha que enfrentar quase 1 hora de bonde até chegar lá. O prédio era gigantesco e crianças pululavam feito ratazanas pelos corredores. O ritmo militar dava o tom à escola, desde o apito até as regras da caserna sobre onde tirar os sapatos, pendurar os casacos, colocar o cantil de água. Tudo tinha hora para começar e terminar: sem o “chorinho” brasileiro. Era, enfim, o lema da “ordem e progresso” batendo à porta de um aquariano de 5 anos de idade.

O quê? Ser criativo: não! O quê? Tocar tambor fora da aula de música: não! O quê? Se recusar a andar em fila indiana: não! O quê? Ser você mesmo: não! O quê? Não! Não me pergunte mais nada! É não! Será sempre “não” para você que é uma pedra redonda querendo se encaixar no nosso muro de quadrados!

Foi isso o que aconteceu.

Incompreensão da escola com uma criança que acabou de deixar para trás todos os seus laços e que não fala a sua língua? Não! Acho que não. Esse é o cenário mais comum de lá.

Impaciência de uma professora de meia-idade que tem que lidar com 20 crianças de uma vez? Talvez, sim. Talvez, não.

Imprudência do diretor da escola por chamar os pais 3 vezes em 3 semanas para reclamar que seu filho chora e é rebelde? Talvez, sim. Talvez, não.

E o que dizer se, na derradeira reunião, o diretor diz aos pais que estes estão em “total denial” em relação ao seu filho? Olha, certamente, a International School of Lilliput não tem uma boa consultoria jurídica. Bastaria um recém formado doutor pela Lilliput University para dizer ao “mestre, com carinho” que essa negação total lhe renderia um belíssimo processo por danos morais. Fosse aqui a terra do Tio Sam, nós estaríamos feitos! Isso me dá uma paz de espírito...

Depois disso foi só descida da montanha, e um dos fundos de poço dos mais cheios de lodo que eu já pisei. Mas, é estranho como é preciso aceitar a escuridão sem negacionismos. Um nova porta se fechou. Eu me calei. Prostrada, eu buscava por mais um “não” para me convencer de que voltar e encerrar esse projeto tinha uma justificativa. Foi quando veio o “sim”.

“Sim, seu filho é bem-vindo em nossa escola!”. Foi o que me disse Ms. K numa manhã fria de outono. Com um sorriso estampado no rosto, um inglês com impecável acento norte-americano, uma franqueza e uma beleza afro-descendente, ela era a imagem de um oásis em meio à secura de humanidade que me rodeava.

Naquele mesmo dia, Ms. K me apresentou à Ms. A, uma figura enigmática que, assim como surgiu, um dia se foi sem dar notícias. Mas, Ms. A nunca me enganou! Vou lembrar dela para sempre como naquele dia de Halloween: com os longos cabelos brancos e naturais, o chapéu pontudo de bruxa e a capa negra até os pés. Ms. A era tão bruxa e tão misteriosa, que era filha de francês e argentina, e na última vez que ela falou comigo, na formatura do pré-primário de Didier, ela sorriu muito e repetiu várias vezes: “Didier está pronto! Ele está pronto, não se apresse”.

Didier, hoje, é uma das crianças mais felizes da escola bilíngue. Lá, de alguma forma, eles encontraram o equilíbrio entre o respeito à individualidade e o cumprimento das regras. Lá, de alguma forma, aprender é um ato natural e humano, cheio de vicissitudes e desafios.

Enfim, toda criança merece o seu “Castelo de Hogwarts”, e Didier bateu de frente e contra muitas paredes para achar o seu espaço.

Num dia de desânimo, lá bem atrás, eu cheguei em casa e coloquei bem alto para tocar “Another Brick in the Wall”. Era um protesto meu. Mas, eu não podia passar toda esse inconformismo para Didier. Ele ficou ao meu lado, observou, observou. E, uns dias depois me pediu: “Mamãe! Quero ver de novo aquele clip das crianças virando linguiça!”. Impecável!

Mas, eu não quero ser aquela mãe velha que só gosta do bom e velho rock. Então, quero guardar também a mensagem atual, que diz o mesmo, que lembra da saga que é ser um garoto que não faz o que te mandam fazer, ainda que você seja o raio bem antes do trovão.

Boa lição para uma vida sabática: nada sai conforme o planejado; ainda assim, muitas coisas se tornam ainda melhores do que o esperado.

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