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Como nossos pais

Às vezes, é preciso ir tão longe, romper tantas amarras, reiventar-se tantas vezes para, enfim, reconhecer-se e assumir que, sim, que temos muito de nossos pais em nós mesmos.

Lilliput me ajudou a compreender isso: Linda (era como eu chamava a minha mãe) vive dentro de mim, e me conduz, várias vezes, com sua voz serena e sua resiliência atroz.

No início de novembro ela teria feito 81 anos. Mas, Linda partiu bruscamente há 8 anos atrás. Experiência que não desejo à ninguém, nem ao mais vil dos seres. Partiu numa madrugada, em casa; e meu pai já muito adoentado não teve nem tempo para socorrê-la. Eu havia rumado para uma temporada de 1 ano em NYC há menos de 10 dias, e vivia uma fase nebulosa em minha carreira – recém-doutora sem perspectivas – estava atormentada por crises de enxaqueca terríveis e, me lembro que, enquanto fazia exames clínicos para um diagnóstico mais preciso, Linda me pediu veementemente para não me mudar para NYC. Mas, eu não era uma filha que escutava os conselhos da minha mãe... Então, ela me ordenou: “Nada de engravidar em NYC! Quero ver você com aquele barrigão bem aqui embaixo dos meus olhos!”.

Hoje, eu penso que ela sabia que partiria em breve. Tinha uma profundidade e uma verdade naquele olhar. Foi um abraço de “vou olhar por você, mas em outra dimensão”. Tanto que, quando o telefone tocou naquela madrugada fria de NYC e a notícia da sua partida me cortou feito lâmina, o primeiro pensamento que invadiu minha cabeça foi: “Linda se foi sem ter netos e sem ver minha barriga...”.

Depois disso, foram acontecimentos infinitos que não caberiam aqui. Ficou a certeza de que eu tinha que passar por tudo aquilo e ponto. Didier e Petite escolheram pelo menos uma mãe calejada e fortalecida pelos “nãos” da vida, e ao mesmo tempo, leve e sensível.

E o que Lilliput tem a ver com esta história? Lilliput é para mim a versão européia da cidade onde eu nasci: pequena, e conservadora. E nesse ambiente, que me lembra a minha infância, passei a compreender Linda de uma outra maneira: muito mais terna. Agora, entendo bem as frustrações dela quando, aos domingos, não havia nada aberto na cidade, e ela tinha que ir para o fogão fazer o almoço de família. Solidarizo-me com os rompantes de Linda, quando, no fim da noite a pia está cheia de louças, estou exausta, não tenho quem me ajude, mas minhas crianças me pedem colo e atenção e, me dá uma vontade louca de largar tudo, mas não posso.

Linda também me inspira quando eu sei que é preciso fazer mágica na cozinha e transformar aquele monte de ingredientes em algo espetacular; porque, depois de 1 ano em Lilliput, confesso que essa cidade (e esse país) não nasceram para a culinária gourmet: falta tempero, falta qualidade na carne, falta mojo, falta amor em tudo o que eu experimento nos restaurantes daqui.

Nesses tempos sábaticos, em que muitas experimentações são permitidas para vencer o tédio, Linda sobrevôoa a minha cabeça e me pergunta: “Por quê não?”. Com isso, solto a imaginação da artesã que sempre existiu em mim, mas que a vida urbana e profissional insistiam em abafar. Com isso, é um tal de bordar toalhinhas para recém-nascidos dos amigos, tecer cachecóis para Didier e Petite, bordar vestidos com cristais para Petite, pintar pequenos móveis, plantar flores nos canteiros, etc... Tanto que, às vezes, tenho que me controlar com a mania do artesanato, senão, deixo de lado de uma vez por todas os meus escritos científicos e minha pesquisa!

Pacientemente, eu vou me descobrindo como mãe e como mulher. Começo a valorizar a importância do empoderamento feminino. Tudo ao seu tempo. Pacientemente, eu vou percebendo que Lilliput apareceu no meu caminho para que eu pudesse reconhecer:

“... que apesar de termos feito tudo o que fizemos

Ainda somos os mesmos

E vivemos

Ainda somos os mesmos

E vivemos

Como os nossos pais...”.

Ironicamente, “Como nossos pais”, do álbum “Falso Brilhante” de Elis Regina, era trilha sonora garantida no carro dos meus pais nos anos oitenta. Eu gostava daquela rebeldia, daquela voz rasgada e contestadora. Só agora eu sei o porquê.

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